No debate sobre a mineração em terras indígenas, “o Canadá está alguns passos à frente do Brasil” e “as universidades têm desempenhado um papel importante no sentido de estimular a reflexão franca e o debate aprofundado sobre a mineração em terras indígenas, aproximando governos, empresas e povos indígenas em seminários acadêmicos”, diz Leonardo Barros, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, à IHU On-Line. “Não tenho conhecimento de que os pronunciamentos do governo brasileiro no sentido de liberar a mineração em terras indígenas tenham dado ensejo a um grande debate acadêmico, ou mesmo na esfera pública mais ampliada, por aqui”, diz, ao comentar as iniciativas do presidente Jair Bolsonaro, favoráveis à exploração mineral em terras indígenas.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o pesquisador informa que o Canadá, assim como o Brasil, tem “uma imensa população tradicional composta pelos Inuit, os povos tradicionais do Ártico, os chamados Métis, população com ancestralidade mista entre indígenas e colonos europeus e, por fim, as chamadas ‘Primeiras Nações’ (First Nations), povos indígenas da forma como conhecemos o conceito aqui no país”, e que os dois países “comungam de uma história de relações ambíguas com seus povos indígenas” e “buscaram, por métodos diferentes, ‘integrar’ suas populações indígenas ao conjunto da sociedade colonizadora”.
Leonardo Barros é autor da tese “(Un)changing Indigenous land claims: evidences from a cross-national comparison between Canada and Brazil” ((I)mutáveis reivindicações de terras indígenas: evidências de uma comparação transnacional entre Canadá e Brasil – tradução livre), que apresenta um estudo comparativo acerca de como indígenas canadenses e brasileiros têm participado das políticas indigenistas de seus países e atuado em suas terras, e de como empresas e instituições federais têm se envolvido nos processos de extração mineral em terras indígenas. Entre as diferenças que envolvem o reconhecimento das terras indígenas nos dois países, Barros pontua que “os territórios indígenas canadenses são reconhecidos por meio de um tratado assinado entre governo e povos indígenas e, neste acordo, são esclarecidos os termos relativos à possibilidade de empreendimentos econômicos, incluindo atividades de mineração. Já as terras indígenas brasileirassão reconhecidas mediante um processo constitucionalizado que finda com um conjunto de direitos imediatamente reconhecidos, não passíveis de negociação bilateral entre povos indígenas e corporações”.
De acordo com ele, embora do ponto de vista legal as terras indígenas canadenses estejam “mais abertas a empreendimentos econômicos do que as terras indígenas brasileiras”, não há consenso entre as comunidades canadenses sobre o tema. “Algumas lideranças dos povos tradicionais que embarcam em parcerias com empreendimentos minerários argumentam que as relações entre as partes não precisam ser, necessariamente, conflituosas, e que um relacionamento mutuamente benéfico pode ser obtido quando da consideração, a sério, do ponto de vista destes povos no desenho e na implementação dos projetos. Estas lideranças, em conjunto com executivos de mineradoras, buscam um acordo de boa-fé que possa, efetivamente, significar a melhoria de vida para as comunidades envolvidas”, conta. Já os que são contrários à atividade mineral em terras indígenas “apontam para os passivos ambientais que, por vezes, podem degradar uma área de forma irreversível, tornando certas atividades tradicionais inviáveis, com importantes repercussões para os modos de vida tradicionais. Também demonstram preocupação com a dependência econômica total das comunidades com relação aos empreendimentos”, afirma.
Ao comentar a discussão sobre a possibilidade de legalizar a atividade minerária em terras indígenasdo lado brasileiro, Barros frisa que “o Brasil é um dos poucos países do mundo em que ainda hápovos indígenas em isolamento voluntário, sem contato algum com a sociedade circundante, e que decidiram assim permanecer. O Estado brasileiro tem o dever constitucional de proteger esses povos. A mera perspectiva de abrir os territórios em que estes povos habitam para empreendimentos minerários parece-me aterradora. Não vejo como isso não possa significar outra coisa que não o genocídio destes grupos”. Na avaliação dele, a experiência indígena no Canadá “ajuda apenas em parte”, porque “olhar para o Canadá como um bom modelo da relação entre povos indígenas e mineração deve ser visto com prudência e com análise detida em cada caso concreto”.
Leonardo Barros Soares é psicólogo formado pela Universidade Federal do Ceará – UFC, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Realizou estágio doutoral em 2017 na Université de Montréal junto ao Centre de recherche sur les politiques et le développement social – CPDS. É membro do Réseau d’études latino-américaines de Montréal – RÉLAM e desenvolve pesquisas na área de democracia participativa, instituições participativas, teoria deliberacionista, política urbana, etnopolítica, política indigenista comparada, povos indígenas americanos, movimentos sociais e associativismo étnico e políticas de reconhecimento territorial indígena.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Desde quando empresas de mineração atuam em terras indígenas no Canadá? Qual é o marco legal que regulamenta esse tipo de atividade e como se chegou a essa decisão?
Leonardo Barros – Antes de mais nada, é importante esclarecer para o público brasileiro que o Canadá é, assim como o Brasil, um dos países com maior demodiversidade do globo, com uma imensa população tradicional composta pelos Inuit, os povos tradicionais do ártico, os chamados Métis, população com ancestralidade mista entre indígenas e colonos europeus e, por fim, as chamadas “Primeiras Nações” (First Nations), povos indígenas da forma como conhecemos o conceito aqui no país. Lá como cá, eles também são o segmento populacional mais subalternizado e empobrecido da sociedade. É importante começar nossa conversa mencionando este fato — que o Canadá tem centenas de povos tradicionais em seu território —, o que é uma surpresa para muita gente.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Desde quando empresas de mineração atuam em terras indígenas no Canadá? Qual é o marco legal que regulamenta esse tipo de atividade e como se chegou a essa decisão?
Leonardo Barros – Antes de mais nada, é importante esclarecer para o público brasileiro que o Canadá é, assim como o Brasil, um dos países com maior demodiversidade do globo, com uma imensa população tradicional composta pelos Inuit, os povos tradicionais do ártico, os chamados Métis, população com ancestralidade mista entre indígenas e colonos europeus e, por fim, as chamadas “Primeiras Nações” (First Nations), povos indígenas da forma como conhecemos o conceito aqui no país. Lá como cá, eles também são o segmento populacional mais subalternizado e empobrecido da sociedade. É importante começar nossa conversa mencionando este fato — que o Canadá tem centenas de povos tradicionais em seu território —, o que é uma surpresa para muita gente.
Brasil e Canadá comungam de uma história de relações ambíguas com seus povos indígenas. Ambos os países buscaram, por métodos diferentes, “integrar” suas populações indígenas ao conjunto da sociedade colonizadora e, ainda hoje, oscilam entre aproximações produtivas e distanciamentos genocidas com suas populações tradicionais.
Dito isso, cabe ressaltar que, assim como o Brasil, o Canadá é um país com forte dependência de commodities extrativistas e com forte atividade minerária em seu território e em outros países, inclusive no Brasil, por meio de empresas tais como a Yamana Gold e a Lundin Mining, para ficarmos em apenas dois exemplos. Como não poderia deixar de ser, estas atividades impactam sobremaneira os povos tradicionais por lá também.
Mineração no Canadá
Não há uma legislação federal sobre a mineração no Canadá e a matéria é largamente regulada pelas províncias, que gozam de maior autonomia que suas contrapartes brasileiras. Assim, diversos tipos de licenças e procedimentos são requeridos a depender da província, do metal a ser explorado e do porte do empreendimento. Em todo caso, há um interesse comum entre governos provinciais e governo federal para a exploração mineral no território canadense, e a atividade conta com gordos subsídios, além de diversas facilitações para que os empreendimentos ocorram.
A maioria dos povos indígenas canadenses só teve maior contato com a mineração a partir da década de 1970, com algumas exceções de povos que convivem com a atividade há gerações. Até aquela época, os povos indígenas canadenses pouco ou nada podiam fazer quando da determinação de um empreendimento minerário em seus territórios. No entanto, a partir de 1975, com a edição do primeiro tratado de reconhecimento territorial indígena moderno, o James Bay and Northern Quebec Agreement, os povos Crees, Inuit e Naskapi ganharam um maior controle sobre decisões relacionadas à mineração em seus territórios. Esse entendimento foi reforçado em 1978, a partir do relatório Berger recomendando a não instalação do Mackenzie Valley Pipeline sem a consulta prévia aos indígenas afetados. De lá para cá, artigos regulando atividades de mineraçãoforam incluídos em diversos tratados territoriais.
Mineração em terras indígenas canadenses
A mineração em terras indígenas canadenses também é limitada por sucessivas decisões da Suprema Corte Canadense, tais como a Haida/Taku ou a recente decisão Ross River Dene Council, da corte de apelação do Território Yukon, que estabelecem a obrigatoriedade de uma consulta esclarecida com os povos indígenas para sua participação na definição da melhor alocação dos recursos naturais presentes em suas terras. Na prática, no entanto, há alguns grupos que se queixam de que os governos provinciais e federal não protegem seus interesses, o que os deixa desamparados frente às propostas feitas pelas grandes empresas de mineração.
Por outro lado, há também lideranças de alguns povos tradicionais que entendem que as companhias estão mais bem posicionadas para avaliar os impactos sobre os povos indígenas e são mais flexíveis em negociações diretas do que os governos. Essa negociação direta entre companhias e povos indígenas é que é a regra por lá.
IHU On-Line – Em artigo recente o senhor disse que existem “modelos bem-sucedidos de parceria entre mineradoras e povos indígenas” no Canadá. Pode nos contar como são feitas essas parcerias, que áreas as mineradoras exploram e por que, na sua avaliação, elas são bem-sucedidas?
Leonardo Barros – Para entender a “parceria” entre mineradoras e povos indígenas por lá, é relevante saber que desde meados do século XIX, após uma forte intervenção do governo nas estruturas tradicionais de organização dos povos indígenas, hoje muitos deles se organizam em “conselhos” que assumem uma forma “quase-municipal” com eleições regulares, estrutura administrativa, assessorias, departamentos, critérios de membresia, jurisdição sobre alguns assuntos etc. Assim sendo, não é de se estranhar que essas estruturas administrativas considerem, muitas vezes, os royalties da mineração como uma importante fonte de renda.
Diante das precárias situações de qualidade de vida experimentadas por muitos povos indígenas canadenses, incluindo altos índices de desemprego, a mineração pode aparecer, no melhor cenário, como uma oportunidade de aumento da renda coletiva e eventualmente da melhoria da infraestrutura comunitária. Além disso, a estratégia de resistência de qualquer grupo social subalternizado pode passar pela ideia de que se a mineração, ou qualquer outro empreendimento de grande porte é inevitável, que ao menos se possa, então, garantir o melhor aproveitamento possível para o grupo atingido.
Quando falo de parcerias bem-sucedidas, me refiro exatamente ao fato de que, diante do empreendimento, povos indígenas politicamente mais organizados e coesos foram hábeis em negociar acordos mais benéficos para si. Estes acordos, chamados de forma geral de “IBAs” (Impact and Benefit Agreements, Acordos de Impacto e Benefício, em tradução livre) ou ainda de “SEPAs” (Socio-economic Participation Agreements, terminologia utilizada pela Aboriginal Mining Corporation e que significa Acordos de Participação Socioeconômica, em tradução livre), contratualizam a relação entre mineradoras e povos indígenas e já passam de cem acordos firmados, hoje em dia, em diversas regiões do país. Os governos provinciais e federal entram como responsáveis fiduciários.
Entre os exemplos mais notáveis está o caso do acordo que deu origem ao reconhecimento do imenso território de Nunavut, que prevê, em seu artigo 26, do IBAs, que “promovam os objetivos culturais Inuit e aumentem seu padrão de vida”. O acordo sobre a mina Raglan, realizado entre os Inuit e a Societé Minière Raglan du Québec Ltée em 1995, também previa a contratação prioritária de Inuits qualificados para trabalhar na mina, o estabelecimento de um comitê para a supervisão contínua do empreendimento, um representante do povo tradicional no conselho de direção da empresa e uma indenização de 60 a 100 milhões de dólares canadenses, mais a distribuição de royalties e de lucros e dividendos. Outro exemplo de sucesso é a parceria entre o Grande Conselho dos Crees e a Goldcorp Inc. em 2011 para o desenvolvimento e operação do chamado Éléonore Gold Project.
Além disso, poderíamos citar a comunidade Moose Cree, na província de Ontário, que se tornou parceira de negócios da Ontario Power Generation na construção de uma hidrelétrica no rio Mattagami. A comunidade de Fort McKay, em Alberta, se beneficiou dos empregos gerados pela exploração do xisto betuminoso na região. Aliás, a indústria da mineração é potencialmente o maior empregador de indígenas por lá. Os exemplos são múltiplos, mas ainda não há uma apreciação de conjunto sobre a questão de forma mais aprofundada. A pesquisa acadêmica sobre o assunto ainda é inicial por lá, ao passo que é virtualmente inexistente por aqui.
IHU On-Line – De outro lado, quais são os conflitos existentes no Canadá entre os povos indígenas e as mineradoras?
Leonardo Barros – Os povos indígenas canadenses têm uma longa história de movimentos de resistência contra governos e corporações, potencializados a partir de 1960 e recentemente reeditados no chamado movimento Idle No More em 2013. Diga-se de passagem, um dos desencadeadores desta que foi uma das maiores mobilizações indígenas em todo o mundo foi, justamente, a proposta de mudança na legislação ambiental e na de águas navegáveis do Canadá, o que beneficiaria enormemente empresas de exploração de recursos naturais em detrimento das formas tradicionais coletivas de gestão dos territórios e das águas indígenas.
A resistência aos projetos de exploração de recursos minerais no Canadá assume várias formas, desde os tradicionais protestos de rua até formas mais complexas, como o recente caso em que os Kw’alaams rejeitaram, por meio de um referendo, um projeto em parceria com a multinacional Petronas para a construção de um terminal de exportação de gás liquefeito na costa noroeste da Colúmbia Britânica no valor de 1,5 bilhão de dólares canadenses.
O repertório de ação coletiva dos grupos é variado, indo desde forte presença midiática até ações mais diretas, tais como bloqueio de estradas ou confronto direto com forças de segurança, passando por lobby organizado sobre parlamentares, marchas e atividades de cunho simbólico, como rodas de dança e cantos tradicionais.
IHU On-Line – Como os indígenas canadenses têm se pronunciado sobre a extração de minério em suas terras? O que dizem os indígenas que são favoráveis a essa prática e os que são contrários?
Leonardo Barros – Não há uma voz unificada dos povos indígenas e demais povos tradicionais sobre esse tema, como também não há, diga-se de passagem, no Brasil. O que há é a organização em associações mais ou menos representativas, tais como a Assembleia das Primeiras Nações (Assembly of First Nations) e os conselhos de líderes de cada povo, variando de região para região. Em resumo, o panorama político é complexo e resiste a uma generalização.
Algumas lideranças dos povos tradicionais que embarcam em parcerias com empreendimentos minerários argumentam que as relações entre as partes não precisam ser, necessariamente, conflituosas, e que um relacionamento mutuamente benéfico pode ser obtido quando da consideração, a sério, do ponto de vista destes povos no desenho e na implementação dos projetos. Estas lideranças, em conjunto com executivos de mineradoras, buscam um acordo de boa-fé que possa, efetivamente, significar a melhoria de vida para as comunidades envolvidas. Historicamente, o governo canadense apresenta fortes déficits de investimento em infraestrutura e geração de renda e emprego nas comunidades indígenas, que observam nas parcerias a possibilidade de virarem o jogo a seu favor.
Os que se pronunciam de forma contrária apontam para os passivos ambientais que, por vezes, podem degradar uma área de forma irreversível, tornando certas atividades tradicionais inviáveis, com importantes repercussões para os modos de vida tradicionais. Também demonstram preocupação com a dependência econômica total das comunidades com relação aos empreendimentos, algo que pode ser visto facilmente aqui, no Brasil, em muitas cidades do interior. Por fim, chamam a atenção para a deficiência do Estado canadense em sua capacidade de fazer cumprir sua legislação ambiental e de direitos humanos em situações de violações destes direitos por parte das mineradoras.
IHU On-Line – Quais são as vantagens e desvantagens da extração mineral em áreas indígenas no Canadá?
Leonardo Barros – A principal vantagem é, como eu já disse, que diante de uma situação de intensa degradação das condições de vida de muitas comunidades, a renda obtida a partir da tributação da atividade minerária e dos empregos gerados podem ter um impacto positivo na vida dos povos indígenas que vivem nas áreas abarcadas pelo empreendimento. Ser protagonista, ou pelo menos uma voz importante na definição dos rumos de empreendimentos econômicos em seu território não é pouca coisa. Feitos de boa-fé e com todas as garantias contra as violações de direitos humanos, os acordos podem trazer, sim, benefícios econômicos palpáveis.
Por outro lado, as desvantagens são muitas: degradação ambiental, poluição dos rios e do solo e até mesmo o aprofundamento da erosão do já esgarçado tecido social em muitas comunidades, uma vez que a gestão dos fundos oriundos da mineração pode dar ensejo a disputas fratricidas no interior de comunidades já fraturadas por disputas políticas.
IHU On-Line – Como o debate sobre a mineração em terras indígenas tem sido feito no Canadá? Como as empresas mineradoras, as comunidades indígenas e a sociedade se pronunciam neste debate?
Leonardo Barros – Creio que, neste ponto, o Canadá está alguns passos à frente do Brasil. Há um crescente interesse entre as empresas mineradoras de lá em aumentar sua capacidade de compliancecom as regras internacionais, as regras ambientais do país e as decisões tomadas nas cortes superiores. Não me parece que algo similar seja a tônica por aqui.
Além disso, por lá as universidades têm desempenhado um papel importante no sentido de estimular a reflexão franca e o debate aprofundado sobre a mineração em terras indígenas, aproximando governos, empresas e povos indígenas em seminários acadêmicos. Não tenho conhecimento de que os pronunciamentos do governo brasileiro no sentido de liberar a mineração em terras indígenas tenham dado ensejo a um grande debate acadêmico, ou mesmo na esfera pública mais ampliada, por aqui.
Em suma, penso que o debate canadense sobre o tema é mais franco, inclusivo, aberto e democrático do que o nosso que, aliás, inexiste. Não é perfeito, longe disso, mas pelo menos existe e inclui, de alguma maneira, povos indígenas, os principais interessados.
IHU On-Line – Que semelhanças e diferenças percebe no tratamento brasileiro e canadense da exploração mineral em terras indígenas?
Leonardo Barros – Os territórios indígenas canadenses são reconhecidos por meio de um tratado assinado entre governo e povos indígenas e, neste acordo, são esclarecidos os termos relativos à possibilidade de empreendimentos econômicos, incluindo atividades de mineração. Já as terras indígenas brasileiras são reconhecidas mediante um processo constitucionalizado que finda com um conjunto de direitos imediatamente reconhecidos, não passíveis de negociação bilateral entre povos indígenas e corporações.
Do ponto de vista legal, as terras indígenas canadenses estão mais abertas a empreendimentos econômicos do que as terras indígenas brasileiras, no bom e no mau sentido. No bom sentido, grupos indígenas mais organizados e com maior capacidade de negociação podem lucrar consideravelmente ao se engajarem em negociações diretas com mineradoras, revertendo a renda da mineração para a melhoria das condições de vida de suas comunidades. No mau sentido, os territórios estão mais vulneráveis ao poder por vezes esmagador das companhias e podem acumular um passivo ambiental e social com repercussão duradoura. Por outro lado, a negociação direta entre empresas e povos indígenas não é permitida pela constituição brasileira.
Além disso, a legislação sobre o assunto no Canadá é provincial, o que seria um completo desastre por aqui, dado que os governos estaduais são, em sua maioria, dominados por oligarquias políticas e econômicas com interesses diametralmente opostos aos dos povos indígenas. Portanto, são duas diferenças importantes: os povos indígenas podem negociar diretamente com as empresas, que estão submetidas a legislações e requerimentos que variam de acordo com a província que receberá o empreendimento.
Uma diferença importante entre os dois países, que considero importante frisar, é que o Brasil é um dos poucos países do mundo em que ainda há povos indígenas em isolamento voluntário, sem contato algum com a sociedade circundante, e que decidiram assim permanecer. O Estado brasileiro tem o dever constitucional de proteger esses povos. A mera perspectiva de abrir os territórios em que estes povos habitam para empreendimentos minerários parece-me aterradora. Não vejo como isso não possa significar outra coisa que não o genocídio destes grupos.
Leonardo Barros – A atividade minerária é destrutiva por definição, e seus impactos não se fazem sentir apenas sobre o meio ambiente, mas também sobre sociedades inteiras. Tais impactos podem ser capazes de destruir ecossistemas inteiros e fazer sumir do mapa formas de vida singulares, tradições orais e cosmovisões indígenas. Considere a realidade de um empreendimento minerário de grande vulto: grandes canteiros de obras, explosões, maquinário pesado, ruído intenso, trepidação, poeira, abertura de rodovias ou ferrovias para escoamento do minério, intenso trânsito de caminhões, construção de dutos, utilização de grandes quantidades de água, e, sobretudo, um grande influxo de trabalhadores para a área da mineração e seu entorno. Em resumo, é um cataclisma de proporções não triviais e de efeitos prolongados. Qualquer pessoa que resida numa região com atividade mineradora, como eu, que moro em Minas Gerais, sabe do que estamos falando. Mineração é um “negócio bruto”, dificilmente conciliável com a visão sacra que os povos indígenas têm da natureza.
Se ninguém quer uma mina perto da sua casa, por que os povos indígenas iriam querê-las? Em nome de qual “desenvolvimento” e para quem? Mesmo operações de pequena escala podem trazer um risco potencial imenso, que simplesmente não vale a pena correr. Seria mais justo, a meu ver, pensar em como potencializar o bem-estar das populações indígenas e sua capacidade de sustentação econômica a partir do fortalecimento de suas identidades e de suas atividades tradicionais, e não focando em atividades extrativistas cujo impacto pode simplesmente inviabilizar a sua existência nos territórios em que habitam.
No que diz respeito ao que poderíamos aprender com o caso canadense, penso que a maior contribuição para o caso brasileiro venha justamente da cultura corporativa das mineradoras por lá, mais engajadas na discussão sobre os potenciais impactos da mineração sobre povos indígenas do que aqui. A Mining Association of Canada, que congrega cerca de 60% das empresas de mineração do país, lançou em 2004 a chamada Iniciativa em Direção a uma Mineração Sustentável (Towards Sustainable Mining Initiative), de aderência mandatória para os seus membros, e que se propõe a liderar mundialmente os exemplos de inclusão de comunidades tradicionais no desenho e implantação de empreendimentos minerários.
Acrescentaria também que valeria a pena olhar para como as universidades de lá têm conseguido se inserir de forma crítica no debate sobre o tema. Todos podemos aprender muito mais através do diálogo franco e crítico, algo praticamente impossível no Brasil contemporâneo.
IHU On-Line – Como surgiu o termo “mineração verde” e qual é o objetivo de tratar a mineração desse modo?
Leonardo Barros – Utilizei esta expressão num artigo para o Brasil de Fato em que eu discutia exatamente as declarações do ministro de Minas e Energia, numa feira para mineradoras em Toronto, sobre o projeto do governo Bolsonaro de liberação da mineração em terras indígenas. Eu dizia que não existe “mineração verde” — ou é mineração — explosões, maquinário pesado, desmatamento, produtos químicos letais, erosão do solo e poluição dos rios — ou é “verde”, as duas coisas não vão juntas, embora a propaganda destas empresas queira nos fazer acreditar o contrário.
Assim, é imperioso reforçar que a liberação indiscriminada da mineração em terras indígenas poderá significar a destruição de ecossistemas em larga medida ainda muito preservados pois, como se sabe, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, as áreas de ocupação tradicional costumam ser as mais conservadas em todos os aspectos. Querem minerar no Xingu? Vão destruí-lo. Querem minerar em terras Yanomami? Vão destruí-las também. É preciso dizer isso sem meias palavras, sem cosméticos, e estarmos conscientes das repercussões que nossas escolhas políticas têm. Qualquer medida de mitigação não passa disso: um paliativo. As mineradorasrealizam seus lucros e vão embora. O real estrago permanece com os povos que habitam a região da atividade minerária.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Leonardo Barros – Creio que, no momento histórico em que o Brasil se encontra, urge repensar a atividade minerária de ponta a ponta, desde sua legislação maior até as atividades mais básicas dos trabalhadores e das empresas envolvidas na exploração de recursos minerais, ao invés de propor a liberação indiscriminada de acesso às terras indígenas para a mineração. Depois dos crimes cometidos pela Vale S/A em Brumadinho e em Mariana, como se pode pensar em ampliação das áreas de mineração no país sem um controle estrito dos procedimentos e dos impactos e um amplo debate público e democrático sobre esta atividade econômica?
Olhar para os “países desenvolvidos” como o Canadá ajuda apenas em parte, pois a ideia de que “tudo lá é melhor” é muitas vezes apenas fruto de nossa ignorância com relação a outros países somada a nossa “síndrome masopatriótica” — popularmente conhecida como síndrome de vira-lata — estimulada diuturnamente por nossa elite e com grande aceitação popular. Nem tudo que reluz é ouro, com o perdão do trocadilho. Nesse aspecto em particular, olhar para o Canadácomo um bom modelo da relação entre povos indígenas e mineração deve ser visto com prudência e com análise detida em cada caso concreto.
Por fim, uma última afirmação. A ideia de que indígenas estão “sentados” sobre imensas reservas minerais que deveriam ser aproveitadas para o “bem de todo o país”, constantemente vocalizada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, é apenas uma das facetas do ancestral preconceito da sociedade nacional para com os indígenas. É racismo puro e simples, que fique entendido, tanto aqui como no Canadá. Infelizmente, o racismo contra os povos indígenas é ainda amplamente aceito por estas sociedades, com as consequências genocidas que temos visto.
Fuente: http://www.ihu.unisinos.br/588709-dizer-que-povos-indigenas-estao-sentados-sobre-imensas-reservas-minerais-e-racismo-puro-e-simples-entrevista-especial-com-leonardo-barros?fbclid=IwAR1afVEVc7MqCwyaG7iWl4oGAc_Tomz-MPJzVdcJdxexIJ-F0Whi7hmujAs